terça-feira, fevereiro 08, 2011

Mito do Bom Selvagem ou Antes de Sartre

Dedicada à amiga Sara Guerra, que não acredita nas essências mas entenderá a essência dessa humilde poesia.

Mito do Bom Selvagem ou Antes de Sartre (2007, após o Encontro Regional dos Estudantes de História em Lajeado)

Acho que estamos ligados um a um, sem a necessidade do ancestral comum.
Andávamos de mãos dadas há muitos anos atrás até que alguém deixou de fazer o bem e deu pra trás, sem a necessidade do Satanás.
Acho que perdemos nossa essência acreditando cegamente na ciência, que tantas vezes provou verdades através de mentiras por conveniência.
E o que há pouco tempo era uma verdade absoluta, hoje não passa de uma mentira fajuta.
Perdemos a nossa essência quando o primeiro desgraçado se achou mais branco ou mais preto, e se achou melhor por isso, e nisso, achou uma razão de viver e matar.
Algumas identidades tornaram-se mortais.
Hoje não sei se evoluímos ou simplesmente perdemos a nossa essência.
Não sei se construímos ou destruímos nossa residência.
Pois temos um planeta em comum, já disse, estamos ligados uma a um.
Mesmo contra a vontade de alguns, contra a infeliz vontade de muitos.
Perdemos a nossa essência transformando nosso paraíso em penitência.
Hoje nos debatemos por um quadrado de cimento e almejamos o enriquecimento, que não acontece sem no mínimo dez empobrecimentos.
Mas nada disso seria preciso se não tivéssemos perdido a nossa essência, se mesmo adultos continuássemos crianças na nossa descomplicada existência.
Se continuássemos desfrutando dos imensuráveis campos, sem cercá-los, sem depredá-los, é necessário saber fruir.
Hoje muitos debatem soluções possíveis para o fim da violência.
Debatem, debatem...
Altercam!!
Tanto! Que existe uma verdadeira guerra para saber quem vai nos mostrar o caminho da paz.
Perdemos a nossa essência, quando tornamos impossível a nossa convivência,
Quando fizemos da nossa diferença algo detestável e do ódio o único fator estável,
Fizemos da alteridade a saudade da identidade. Sim, tentamos transformar a alteridade em nós mesmos, para isso foi preciso destruir o diferente, humilha-lo, escraviza-lo, encarcera-lo.
Destruímos o nosso mundo na velocidade do eclipse,
Sem a necessidade do apocalipse.
Nossas traições e beijos malditos levaram muitos à morte,
Sem a necessidade de Judas Escariotes.
O que faremos? Já que não fizemos!
O que seremos? Visto que não fomos?
O que sentiremos em nosso leito de morte?
Se bem antes da carne o nosso espírito já está putrefato!
Se o preconceito é o nojo do contato!
E sem contato nada vale a pena...
Que saudade da infância...
Que naquela época ninguém morria.
Que eu mesmo me pensava imortal.
Que tinha vó, tinha bisavó, a família era grande naquela época.
Que nada tinha maldade naquela época,
Que foi naquela época: a melhor época.
Que o jogo era amigável,
Que a disputa era saudável,
Que o jogo da velha ainda era novo.
Que eu não via no churrasco um boi morto.
O mais triste é saber que nada era somente belo, agradável e justo,
E que a inocência da infância me cegara para não enxergar a podridão das coisas.
A gente se corrompe em uma curta vida tal qual o mundo em milhões de anos.
Eu também perdi a minha essência quando perdi minha espontaneidade,
E agora penso mil vezes antes de falar e não falo.
Nesse exato momento, falo porque escrevi.
Agora meu pensamento apóia-se no sentimento de não enquadramento nos ambientes que já nem mais freqüento.
Sinto-me absolutamente só, mesmo assim costumo conversar sozinho mais do que com os outros,
E o que mais me incomoda nesse momento é a minha própria presença, gostaria por um momento conseguir parar de pensar.
Preciso acreditar em algo, ao menos voltar a acreditar em mim.
Porém, não quero platéias vaidosas cheias de embasamento teórico e vazias de criatividade, cheias de citações alheias e usando cérebros alheios e inclusive imitando os gestos alheios.
Tampouco populares focando-se em meus defeitos.
Se for assim prefiro versar aos cômoros de areia, que são perfeitos e nem por isso me julgam. Que continuam os mesmos em sua essência, apesar da volatilidade das suas formas.
Porém prefiro a crítica ao falso elogio, de alguém que enquanto eu falava me enxovalhava em seus cochichos,
Na maldita hora em que abri a minha boca,
Na maldita hora que usei a parte mais polêmica do meu corpo.
Ela que é a causadora de todos os antagonismos.
Ela que dá aos pobres, o convite para a miséria.
Ela que explicita o amor e o ódio,
Que ajuda a tragar o veneno da fumaça,
Ela que é indispensável para a trapaça.
Que beija bocas vivas e testas mortas.
Que serve para chegadas e adeuses.
Ela, que mesmo bela e macia, esconde os dentes da antropofagia.
Que oculta os dentes da raiva e retém a saliva.
Que ajuda a fingir que gosta.
Ela que não me deixa fugir ao tema.
Por causa dela que perdi minha essência.
Por usá-la de mais e de menos...

Kauê Catalfamo - 2007