sexta-feira, abril 30, 2010

O Intermediário

“Na luta entre você e o mundo, aposte no mundo”
                           Franz Kafka
           


Tenho certeza que existe um intermediário entre eu e o mundo. E um outro entre eu e eu-mesmo.

O intermediário entre eu e o mundo representa aquilo que eu deveria ser, enquanto o intermediário entre eu e eu-mesmo é o que eu realmente sou. O primeiro é uma vozinha que só eu escuto e que fala somente comigo. O segundo é o que fala com as pessoas e tem que seguir algumas regras dependendo do interlocutor. É a voz que eu pronuncio.

As vezes tenho vontade de arrancar de mim o intermediário entre eu e eu-mesmo (pois ele me fustiga, me aponta o dedo, me faz passar mal) e colocar em seu lugar o intermediário entre eu e o mundo, que trata bem a todos. Portanto não teria motivos para fazer o contrário comigo.

As vezes ainda, tenho a impressão de que o intermediário entre eu o mundo seja apenas eu mesmo e o intermediário entre eu e eu-mesmo seja o próprio mundo.

Assim, já que o suposto intermediário entre eu e o mundo é aquilo que eu deveria ser, talvez realmente eu seja aquilo que eu deveria ser. Ao passo que o intermediário entre eu e eu-mesmo não é o que eu realmente sou , é só o mundo ditando suas regras e me enchendo o saco.

Desse modo concluo que, se eu puder escolher o que seria este ente indesejável: prefiro que ele seja o intermediário entre eu e eu-mesmo ao invés do mundo em si. Pois acredito que é muito mais fácil expulsar algo de dentro de você, do que o mundo do próprio mundo.

Kaue Catalfamo

01/12/2009

quarta-feira, abril 28, 2010

Raika

Era noite e eu passeava com minha cadela Raika. No fim do passeio, passamos por alguns mendigos que preparavam-se para dormir em uma parte coberta do páteo de um bar. Ela comprimentou a todos abanando o rabo. Tratou aqueles mendigos como trataria alguém que tem onde morar, um negro, um branco, um gay...para Raika não importa.

Raika é menos praconceituosa que qualquer ser humano desse mundo. E nunca pensou nisso.

segunda-feira, abril 26, 2010

O Monstro II

Ele está cansado
Não gosta do seu trabalho
Não gosta de trabalhar
Muito embora a concentração que seu trabalho exige, lhe poupa de tantos pensamentos angustiantes que a liberdade de pensamento proporciona a quem pensa.
A quem tem tempo para pensar.
Então ele decide ir para rua fumar um cigarro
Senta-se em um degrau e encosta numa cortina de ferro extremamente suja, devido aos anos exposta a um ambiente urbano e pútrido sem nunca ter sido lavada. Seu patrão é um relaxado. Não cuida de seus empregados tampouco do seu patrimônio, e acha que fazer os seus empregados rezarem o pai nosso depois do almoço vai criar algum espírito de solidariedade entre pessoas que se odeiam e estão no mesmo espaço apenas porque precisam do dinheiro. Além disso, acredita que com o apelo das orações vai amenizar ambiente terrivelmente pesado que ele criou atrasando os salários em mais de duas semanas.

Então, fumando, vê um senhor sentado na rua a poucos metros dele. O velho está completamente bêbado, sua aparência indica que ele vem bebendo há muitos dias, e suas ressacas o deixam cada vez mais mal humorado.
Ele começa a observar o velho que é a face da fossa, e se surpreende quando uma mulher mais nova se aproxima com sua filha a fim de carrega-lo para casa,
Ele constata que a mulher é mulher do velho e que a menina é filha do velho.
A menina dizia - “vamos pai, vamos para casa”.
Enfim, o velho levanta-se sem dizer nada
Caminha devagar com suas pernas finas e infestadas de varizes
Está doente. Provavelmente não sabe disso
A menina fala bastante com seu velho pai, uma menina de uns seis anos
O velho permanece quieto, com os olhos caídos e a boca torta
A menina fala muito, faz perguntas, ela quer ouvir o seu pai. então o velho vira-se violentamente para a menina e grita: - “Já chega!”
Então a menina se calou, a mulher se calou, e o velho continuou calado.
A família entrou em casa.
Ele assistiu toda essa cena com seu cigarro na bagana e também continuou calado, ficou triste e preocupado e pensou que parar de beber seria bom.
Depois pensou em não ter filhos.

quinta-feira, abril 22, 2010

Poesia da música Molotov (Doze Doses)

Salvador Allende No verdadeiro 11 de setembro (1973), dia do golpe de Pinochet

Estou a rasgar a vísceras da cidade
A juntar migalhas míseras de amizade
A cantar canções soníferas da antiguidade
A trabalhar em jornadas sudoríparas contra a vontade
A assistir películas ridículas para passar as tardes
De domingos típicos e santos feriados
A olhar propagandas políticas para achar engraçado
Ouvindo as palavras ofídicas desses desgraçados
Que se associaram aos militares do passado
E hoje dão medalhas honoríficas aos soldados
O AI-5 acabou mas continua o conchavo
Me digam qual general que foi condenado
A informação é restrita por isso ninguém aprende
As atrocidades na América foram muito além de Allende
Beneficiados pela lei até hoje seguem impunes
Os documentos da época lacrados até hoje os tornam imunes
Por isso não duvide que andando na rua, ao cruzar algum senhor
Você esteja a poucos metros de um torturador

A ditadura acabou?
Não pra quem foi sequestrado
Exilado!
Torturado!
As marcas do corpo ficam opacas as da mente martelam pesado
Pergunte aos familiares dos milhares de assassinados
O que fariam com os militares que disparavam em nome do estado
Os torturados, mortos e feridos...foram esquecidos
Os senhores torturadores jamais serão olvidados
Devido ao seu heroísmo, foram homenageados
Em tempos democráticos lhes reservaram um privilégio
Viraram nome de bairro
Viraram nome de prédio
Viraram nome de rua
Viraram nome de colégio
E como se não bastassem as torturas da antigas milícias
Deixaram suas práticas de herança à nossa atual polícia
Agora Democratização. Vingança? Punição? Não! Anistia!
E você continua pagando pelas suas gordas aposentadorias.

Kaue Catalfamo

segunda-feira, abril 19, 2010

O Monstro I


O monstro.

Após cinco dias ele saiu de casa.
Ficara em casa porque não gostava da rua,
Porém naquele momento gostava menos ainda da casa
(se é que alguém podia chamar aquilo de casa).
Então virou a esquina de sua rua e não encontrou ninguém que conhecesse,
Não que ele quisesse ver alguém que conhecesse,
Já que nem sabia se ainda conhecia alguém
E tinha um certo receio de não conseguir interagir,
Ainda assim não tinha certeza se não sabia mais ou não queria interagir.
Como interlocutor, há tempos que era apenas um ouvinte,
Quando muito um comentarista, nunca um narrador.
Seu magnetismo era o de um imã.
De um imã ao contrário de um imã.
Inspirava lento e expirava violento.
Seu desprezo pelo mundo tinha completa reciprocidade do mundo para com ele
E era mais ou menos isso que ele pensava, enquanto esperava o esverdear do semáforo.
Foi nesse momento que ele fitou um casal feliz passeando com seu cachorro, um belo casal ideal. Mais adiante viu uma bela criança dentro de um belo carro ao lado de um pai ideal, que fechava o vidro do carro as pressas, pois não queria as balas de goma do menino de rua que estava vendendo no semáforo. Um menino da mesma idade do seu filho, mas sem um pai ideal e numa nação injusta. Para o pai ideal, que estava ao volante, ele não era um menino ideal, ao menos não o bastante para ser ouvido. Percebeu claramente a metamorfose que se da com as balas de goma no sinal vermelho que viram balas de revólver no sinal vermelho. Junto com o menino que quer ser ouvido no sinal vermelho. Que vira um adulto que não ouve ninguém, e se faz ser ouvido a força no sinal vermelho.
Após essa rápida cena cotidiana, ele respirou fundo e sentiu uma vontade imediata de voltar para casa. Uma incontrolável fobia social.
Todavia passou na padaria para comprar um cigarro e uma cerveja, ele precisava disso mesmo que beber e fumar há tempos não fosse nenhum prazer. Era um vício, e um vício não é um prazer mas se você não o sacia ele te leva ao desespero, é um impulso de morte necessário.
Comprou um cigarro... não o seu cigarro pois este estava em falta.
Comprou uma cerveja... não era a sua cerveja e sim uma mais barata,
Já que cigarro que teve que comprar era mais caro.
Sendo assim pelo mesmo valor que ele gastaria para comprar o que queria,
Ele comprou o que não queria.
Ele estava apressado, pois o dono da padaria, um português desses com bigode grande, estava feliz com alguma coisa e não parava de falar e ele não queria ouvir.
Como um interlocutor, naquele momento, ele não era sequer um ouvinte. Pegou suas coisas e saiu correndo.
Ele corria de tudo. Corria da vida, corria da morte, tinha medo da morte, tinha tédio da vida. E se existe uma maneira de anular ambas, era o que ele vinha fazendo, magistralmente.
*****
Então ele acordou e viu que tudo fora um sonho e já era o sexto dia que estava em casa. Então, num momento inédito, ele teve um pensamento positivo. Chegou à conclusão que o seu sonho teve alguma utilidade por ter lhe dado motivos suficientes para continuar em casa.
Foi aí que, ainda deitado, olhou para o seu lado e viu no chão uma carteira de cigarro. O seu cigarro.
Caminhou lentamente até a sua geladeira, colocou sua mão na porta e a olhou como quem olha para uma bela mulher com um olhar de esperança, ao abri-la teve uma grande surpresa, lá estava a sua cerveja que suava de tão gelada com uma volúpia indescritível própria das cervejas. Abriu um meio sorriso silencioso expirando pelo nariz.
Era mesmo melhor ficar em casa.

Autor: Kaue Catalfamo
Composta em: 2008/09